📢 Viagem do Guilherme Cintra para a Estônia - Dia 1
Uma introdução intensa.
No primeiro dia de conversas na Estônia, visitamos o Estonia e-Briefing Center, localizado na Ülemist City. O e-briefing center é uma organização sem fins lucrativos responsável por promover a marca e-Estonia. Já a Ülemist City, onde fica localizada é, em realidade, um bairro/empreendimento privado na capital Tallin que concentra mais de 500 companhias e 15 mil funcionários. Para ter noção de sua relevância, se fosse efetivamente uma cidade, seria a terceira maior contribuinte em termos de pagamento de impostos no país.
Conversamos com um dos 6 vice-prefeitos/”secretário” de inovação de Tallin, o Chief Digital Officer da Cidade, com uma conselheira para Transformação digital do Estonia e-Briefing Center e com o Head de Desenvolvimento de Negócios da Ülemist City.
Pontos principais de aprendizado:
1. Identidade nacional: o conceito de país digital tornou-se um orgulho nacional. A marca e-Estonia é citada recorrentemente e virou questão de identidade para os cidadãos
2. Contexto: fundamental entender o que os permitiu avançar na digitalização
a. Educação é chave em todo o processo de digitalização:
- Os investimentos na educação de Exatas e Computação vêm desde a época da URSS. Isso criou uma mão de obra de engenheiros muito qualificados. Quando o país deixou de fazer parte da URSS, isso possibilitou a rápida incorporação de tecnologias para aumento da produtividade e crescimento da economia.
- Além disso, os programas de conectividade nasceram dentro das escolas. A Teoria da Mudança era clara: ao dar acesso aos estudantes à tecnologia e formação para lidar com elas, formariam os cidadãos que seriam capazes não só de criar novas soluções como também de cobrar o governo para prover serviços digitais de alta qualidade
- Os cidadãos e servidores públicos têm programas focados em seus desenvolvimentos como cidadãos digitais. Trabalham inclusive com o conceito de “higiene digital”: garantir que suas máquinas, senhas, etc, estejam todas seguras. É sua responsabilidade também garantir essa segurança
3. Racionalização de recursos: já falei na postagem anterior sobre como o país estava destruído e evitou gastar seus parcos recursos à época para criação de uma burocracia estatal pesada. Não tinham alternativa. Mas um outro fator se acrescentava aí: a baixa densidade populacional. São, por exemplo, do mesmo tamanho da Dinamarca, mas têm 6x menos cidadãos. Isso faz com que os custos/cidadão para provisão de serviço sejam altíssimos. Para resolver essa questão, a escala que a tecnologia permite foi uma solução importantíssima.
4. Parceria com o setor privado: nesse ponto, um importante aliado para a digitalização do país foi o setor privado. As PPPs foram citadas como fundamentais para a digitalização do país. O principal impulsionador originalmente foi o setor bancário, exatamente pela baixa densidade demográfica. O governo já havia criado uma infraestrutura pública digital fundamental: a identidade digital obrigatória e a possibilidade de assinar de forma digital. Os bancos tinham todo o incentivo a estimular a população a usar esses serviços de maneira a reduzir a necessidade de criação de agências físicas custosas. Com o setor bancário impulsionando o uso de ferramentas de online banking, o governo pôde atrair mais pessoas para as plataformas digitais onde passaram a ofertar cada vez mais serviços públicos gerando um círculo virtuoso.
Hoje em dia, essa parceria fica evidente na fala do CDO de Tallin. É muito natural para ele afirmar que não há motivo para desenvolver o próprio software se há algo de alta qualidade de prateleira. Focam em garantir que os seus profissionais sejam altamente capacitados para gerir projetos de TI e garantir sua qualidade. Para não ficarem dependentes do setor privado, busca por garantia de interoperabilidade e múltiplos softwares para as diferentes funções ao invés de um único provedor. Com isso, podem trocar de fornecedor rapidamente caso seja necessário.
5. Frameworks legais são fundamentais para todo o processo: o governo estabeleceu inicialmente as identidades e assinaturas digitais como já descrito. Isso forma a base para que os cidadãos possam acessar quaisquer serviços digitais. Nada disso seria possível se não houvesse:
a. Identidade e assinaturas digitais obrigatórias
b. Diretrizes claras que garantem a interoperabilidade de dados: foi desenvolvida a X-Road, solução que garante a segurança com dados criptografados de ponta a ponta e que conecta todos os serviços aos cidadãos. Também existem componentes open-source que são utilizados para criação de qualquer plataforma pública. As diretrizes garantem que os produtos “conversem” em prol da melhor experiência para o cidadão
c. Diretrizes que garantam que não haja duplicação de dados
6. Cidadão é verdadeiramente dono dos dados: por diversas vezes foi falado do cidadão “doando dados” para melhoria de serviços do governo. Por exemplo, a partir de 2001, os cidadão podem “doar” seus genomas sequenciados para enriquecer a base da Saúde que busca melhorar a medicina personalizada. Também estão “doando” amostras de voz para que seja possível treinar chatbots de voz (por terem poucos falantes do estoniano, empresas privadas não desenvolvem nessa língua e o governo se encarregou de garantir que isso seja mudado para que possa haver uma “Alexa/Siri do serviço público”). O governo portanto criou um “Data Tracker” no qual o cidadão tem de forma super simples acesso a seus próprios dados e pode saber quem está acessando e questionar o próprio governo caso necessário. Isso gera confiança e cobrança pela qualidade da segurança.
7. Trabalho junto a startups é estratégico: existem frameworks que facilitam investimento do governo em startups bem como sandboxes regulatórios. Atrair startups para o país é algo chave, também visto pelo e-residency. Por exemplo, 1200 brasileiros são e-residents no país e já criaram 250 companhias.
8. Diretrizes de desenvolvimento de software são muito claras:
a. Design de Serviços: ou seja, não adianta tentar digitalizar um serviço se esse não foi repensado para garantir que esteja bem desenhado de fato. Caso contrário você escalará um serviço ruim
b. Experiência do Usuário: todos os próprios serviços são ofertados no Portal do Cidadão com um esquema de jornada do usuário. Por exemplo, ao clicar em "terei um filho(a)" a janela que abre é um cronograma que vai de antes do nascimento, até os primeiros 3 anos de vida da criança, passando pela recepção de benefícios, matrícula na creche e afins. Isso vai além de software. O que mais me impressiona é o grau de integração e a governança entre os ministérios para que haja uma gestão de conhecimento adequada e uma jornada bem mapeada
c. Análise de processos: continuamente reanalisam seus processos para garantir que estejam sendo racionalizados e evoluindo continuamente
9. Paciência é chave: eles continuamente afirmam que demorou ao menos 5 anos para que os serviços de identidade digital pegassem
10. O futuro é um governo mais próximo e humano: as principais áreas que estão estudando são
a. Integração de IA para atendimento mais proativo ao cidadão: por exemplo, estão desenvolvendo o Bürokratt. A ideia é ter um assistente virtual especializado em serviços do governo para cada cidadão do país. Para isso, precisam ser capazes de treinar Large Language Models em sua própria língua e integrar soluções a seus serviços. Além disso, com um bom mapeamento das jornadas, ao invés de ter o cidadão tendo que acessar os portais para ver se, por exemplo, os resultados de seus exames saíram, podem confiar que assim que estiver pronto, chegarão diretamente à sua caixa de entrada oficial do governo ou a seu email pessoal que pode ser integrado aos serviços públicos
b. Medicina personalizada: com 1/4 da população do país tendo doado seu DNA sequenciado, conseguem fazer coisas como mapear, de forma consensual, cidadãos com maior probabilidade de desenvolver câncer e tratar de forma diferenciada
c. Colaboração com outras nações: daqui emergem algumas oportunidades. Existem questões econômicas como exportar suas tecnologias e reduzir custos de uso ao cooperar com países para o desenvolvimento de soluções. Existe a comodidade dos cidadãos estonianos de poderem sair de seus países levando seus dados juntos com eles. E existe a possibilidade de aprenderem também com outras nações e evoluírem em áreas que sentem que ficaram para trás como computação quântica ou Inteligência Artificial
11. Mas nem tudo são flores. Algumas dificuldades são semelhantes:
a. Difícil tornar inovação transversal às secretarias: hoje entendem que se o “dono do serviço” não estiver alinhado e envolvido, projetos não têm como dar certo, afinal técnicos não entendem suficiente sobre regra de negócios
b. Transparência é sempre pauta dura: iniciar com “frutas baixas” que entregam valor ao cidadão é o caminho. Porém, governos muitas vezes não desejam tornar processos transparentes e muitos cidadãos não entendem o valor disso. Por isso, é uma briga que vão deixando por último
c. Desafios de governança: exemplo prático que deu é que todos os municípios querem que seja entregue por parte do governo federal e estados mas não querem contribuir financeiramente. Ao mesmo tempo, também relutam em perder poder político em integrações. Acho que todo mundo que já trabalhou em governo vai se identificar com esse ponto...
Ou seja, primeiro dia CHEIO de aprendizados! Animado já para os próximos.
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